Atualmente existe um grande debate na sociedade acerca da importância da representatividade para a inclusão de grupos minorizados. Não se ver ou não se reconhecer no mundo pode ter um efeito devastador na autoestima de qualquer pessoa. Em crianças, além de encruar seus sonhos, a falta de convivência com professores, médicos, empreendedores como elas, e a escassez de referências e personagens em livros, desenhos e filmes, podem esvaziar seu interesse pelo conhecimento.
De acordo com IBGE, no Brasil, 56,1% da população se autodeclarou preta ou parda em 2021 e, ainda que maioria em número, trata-se de um grupo minorizado na sociedade brasileira. A luta antirracista busca mudar esse quadro e, entre suas conquistas, pode-se perceber o começo de uma representatividade em espaços importantes, como universidades, livros, filmes, meio artístico…
Ao folhear o livro Amoras, do Emicida, e se deparar com personagens negros, uma das crianças participantes do "Quero Saber…" se reconheceu, abriu um sorriso e gritou: "ó eu aí!". Para Luís (nome fictício), 10 anos, aquilo representou muito mais que um desenho de personagem; abriu-se um portal, porque ele se enxergou ali, não como um elemento secundário da história, mas como protagonista. O UNO acredita que a habilidade de uma criança de se reconectar consigo para ganhar autonomia é um dos elementos-chave para o desenvolvimento de suas potencialidades. Em outra atividade proposta, lendo O Pequeno Príncipe Preto, Luís fez questão de desenhar aquilo que lia, porque a identificação o motivou.
No começo de 2022, quando Luís passou a participar do "Quero Saber…", as ecoeducadoras do UNO perceberam que seu comportamento agitado poderia representar um desafio para o foco e concentração necessários em determinadas atividades que o ajudariam a superar algumas barreiras na alfabetização. A partir de um olhar cuidadoso e amoroso, as educadoras tiveram uma percepção: Luís precisava aprender de corpo inteiro. Passaram a incluir atividades mais dinâmicas e de expansão no planejamento dos encontros. As atividades de estímulo à leitura e à escrita continuaram a fazer parte das propostas, mas, antes delas, brincadeiras como pular corda e correr no quintal integraram a rotina do grupo. Foi então que o garoto mudou sua relação com estímulos externos e passou a tentar se autorregular para conseguir se concentrar e realizar todas as propostas.
De acordo com Paulo Freire, em Pedagogia do oprimido, o corpo é um dos elementos da cultura, mas também pode ser encarado como caminho de libertação, por meio da conscientização. Para ele: “quando se fala de oprimido, o corpo é o oprimido” (p. 45). E, por essa razão, existe a necessidade de concebermos o corpo como educador. Seja o corpo esse maravilhoso mecanismo que nos dá movimento, ou aquele que traz características que foram politizadas socialmente (como cor, gordura, marcas de idade…), ele é o que somos e por meio do qual aprendemos a ser. Portanto, é por meio dele que a educação se concretiza.
Outras atividades também despertaram em Luís o espírito de cooperação com os colegas e o ajudaram a demonstrar mais interesse sobre seu "Quero Saber…". Cozinhar biscoitos em conjunto significou uma trégua entre ele e uma criança, com quem às vezes brigava. Além disso, o orgulho de comer algo feito por eles o nutriu de vontade de organizar tudo, antes mesmo de as ecoeducadoras pedirem.
O origami, paixão de Luís, é mais uma ferramenta que o conecta com seu "Quero
Saber…" e também o ajuda a regular sua ansiedade e paciência. A proposta traz desafios, testes, erros, acertos e um objeto final concreto, fruto daquela disputa com os limites e dobras no papel. Houve vezes em que Luís ficou tão focado
em realizar seu origami de nível difícil que o refez 7 vezes até chegar ao resultado final. O prazer dele também está em presentear os outros com suas lindas dobraduras.
A técnica oriental traz muitos ensinamentos para quem a pratica. Com a possibilidade de desfazer e refazer a peça, a atividade mostra que não há motivos para ter medo de errar e isso se replica para outras áreas de aprendizagem da criança, como na leitura e na escrita de Luís, que passou a se arriscar mais, mesmo sabendo que poderia errar.
Além de explorador e curioso, o que, por vezes, o faz ser inquieto, Luís também adora ajudar os outros. Ao perceber isso, tanto a pedagoga do SAICA onde ele vive, como as ecoeducadoras do UNO propõem atividades que exaltem seus talentos, oferecendo a ele caminhos e ferramentas para explorá-los e se desenvolver.
Mônica Flemming, coordenadora pedagógica do Instituto UNO, pontua a importância de dizer e deixar claro para as crianças e adolescentes que as educadoras e supervisoras pedagógicas gostam deles exatamente do jeito que são, reforçando que a atuação destes adultos se dá no sentido de ajudá-los a se organizar. "Nosso papel é dar espaço pra criança ser ela mesma e ajudá-la a enxergar a potência que ela tem”, completa Taís, ecoeducadora que acompanhou Luís no segundo semestre de 2022.
A história de Luís é exemplar: olhando para si, se reconhecendo em outros lugares que não apenas dentro das paredes do Serviço de Acolhimento, explorando suas potencialidades e entendendo seus limites, mergulhando em desafios, se testando e, principalmente, sendo ouvido e acolhido, que, neste ano de 2022, ele desabrochou seus saberes. Como consequência disso, Luís, que se encontrava no estágio silábico- alfabético - representando algumas sílabas com uma letra, evoluiu para alfabético iniciante, já conseguindo entender tudo o que lê e demonstrando mais familiaridade com a escrita. "Hoje em dia, em quase todas as atividades que são propostas, ele pede para ler”, conclui a ecoeducadora Isabela.
O trabalho do UNO, muito mais que letramento, apresenta ferramentas, constrói pontes que ajudam essas crianças e adolescentes a saírem de isolamentos de compreensão, de entendimento e de autoconhecimento. Reconhecer-se, ler o mundo participando dele como sujeito em ação e com compromisso com o outro são etapas da leitura de mundo, como pontificou Paulo Freire, em A importância do ato de ler: Na verdade, aquele mundo especial se dava a mim como o mundo de minha atividade perceptiva, por isso mesmo como o mundo de minhas primeiras leituras. Os 'textos', as 'palavras', as 'letras' [...] se encarnavam numa série de coisas, de sinais, cuja compreensão eu ia aprendendo no meu trato com eles, nas minhas relações [sociais].
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