A Pedagogia da Emergência é uma abordagem educacional criada por Bernd Ruf que reconhece a urgência e a complexidade dos desafios globais. Seu método é baseado em princípios da Pedagogia Waldorf, com ênfase em recursos artísticos e corporais, dentro de uma perspectiva holística, sistêmica e participativa.
O método é aplicado em situações em que crianças passaram por um grande trauma - catástrofes naturais, guerras ou traumas relacionais. De acordo com Bernd Ruf, em entrevista à Folha de São Paulo, em 26 de novembro de 2016, essas crianças são marcadas pelo que chama de "ferida na alma". Elas desenvolvem diversos sintomas, como dificuldade de dormir, de se concentrar e de estar presente no momento e apresentam dificuldades imensas de aprendizado. Segundo o patrono do método, elas ficam tão presas ao passado, que não conseguem ver futuro.
Segundo Ruf, existem quatro estágios do trauma. O primeiro é o choque, em que aparecem reações fisiológicas, como dor de cabeça e taquicardia, e dura de segundos até dois dias após o evento. A segunda fase é a reação pós-traumática, que dura de quatro a oito semanas e nela aparecem a maior parte dos sintomas dessa ferida na alma - tanto os físicos, como corpo enrijecido, pele pálida e olhos arregalados, como as emocionais - medo, tristeza, depressão, ansiedade e raiva. Quando esse quadro não é tratado adequadamente, acontece o terceiro estágio, quando os sinais iniciais viram uma doença. A quarta fase é mais rara e consiste na mudança permanente de personalidade - a pessoa vira delinquente, antissocial, agressiva e, muitas vezes, incorre nos vícios.
As intervenções pedagógicas de emergência são realizadas, preferencialmente, nos primeiros dias e semanas após o evento traumático, quando ainda é possível reverter os danos causados, e tem o objetivo de ativar e fortalecer estratégias de enfrentamento e o poder de autocura da criança, a fim de apoiá-la no processo de elaboração de suas experiências. Quando se alcança o terceiro e quarto estágios, além dos métodos propostos, é necessária intervenção médica, terapêutica e, mais que isso, uma rede de apoio que suporte as emoções desconexas de quem passou pelo trauma.
Reinaldo Nascimento, durante o "Seminário de Educação em Situações de Emergência e Respostas Humanitárias", baseado em pesquisas e estudos da Associação da Pedagogia de Emergência no Brasil, afirma que: estatisticamente, 25% das crianças que sofreram traumas causados por catástrofes naturais vão precisar de ajuda para não ficarem doentes; em casos de guerras anônimas (quando não se vê o rosto do "inimigo"), esse número passa para 50%; em casos de guerra em que se sabe quem é o agressor, 75% precisará de ajuda; e quando o trauma é causado por pessoas que deveriam proteger a criança, 100% precisará de ajuda. Nesse caso, é extremamente necessária uma rede de apoio que ampare a criança para que aquele trauma sofrido e seus sentimentos sejam revertidos e não se transformem em doença ou atinjam o estágio mais grave, transformando a criança numa reprodutora da violência.
As crianças e adolescentes participantes dos grupos de "Quero Saber..." moram temporariamente em SAICAs (Serviços de Acolhimento Institucional de Crianças e Adolescentes), pois foram afastadas de suas famílias por medida de proteção. Embora não tenhamos acesso às suas histórias de vida, sabemos que muitas delas são vítimas de traumas relacionais. Com o agravante de terem passado das duas primeiras etapas de trauma, em algumas situações.
Conhecer a Pedagogia da Emergência, além de ter contribuído para agregar novos valores e conhecimentos ao Programa, foi muito importante para confirmar que os métodos utilizados por nós desde o início, em 2011, iam ao encontro do que as crianças e adolescentes que trabalhamos necessitam para superar traumas relacionais.
Dentro da nossa proposta, as atividades lúdicas, rítmicas e artísticas são fundamentais para desenvolver a autonomia e o autoconhecimento, para que, assim, os participantes ressignifiquem seus potenciais e passem a sentir alegria e prazer não só no processo de aprendizagem, mas em serem quem são. O projeto “Quero Saber...Valor”1, que é voltado para o público adolescente, baseia-se em cinco pilares, sendo um deles o de "Transformação de Dificuldades em Força de Ação". Para cumprir esse objetivo, o conhecimento que a Pedagogia da Emergência traz contribui imensamente para reverter o quadro recorrente de fracasso que os jovens que moram em SAICAs enfrentam, principalmente quando ficam até atingir a maioridade.
Segundo Mônica Flemming, coordenadora pedagógica do UNO, as atividades do “Quero Saber...” vão muito além da alfabetização, letramento e educação financeira e comportamental. A partir de temas que atendem o ‘querer saber’ dos participantes, o campo para explorar os sentidos, compreender os sentimentos e entender os motivos de certos comportamentos fica mais aberto. Com isso, as crianças e adolescentes se sentem mais confortáveis para se expressarem diante dos conflitos e dificuldades que surgem ao longo do trabalho. Ela também ressalta que as intervenções realizadas nesse sentido são de caráter pedagógico, por meio de jogos colaborativos, atividades manuais, de autoconhecimento, leitura, biografias, técnicas de resolução de conflitos e letramento emocional. No entanto, independentemente de qual for a atividade, o mais importante é desenvolver a escuta ativa e a empatia para que os participantes se sintam à vontade para se expressar.
A coordenadora explica que, diante de um conflito, uma das formas de desenvolver essas habilidades é pedir para que a criança/adolescente localize uma parte do corpo que está com uma sensação diferente. Pode ser na barriga, no peito, na cabeça, nos braços, pernas etc. Em seguida, perguntar como é essa sensação: se é quente ou fria, se é um aperto ou um redemoinho etc. E, por fim, pedir para que a criança/adolescente nomeie essa sensação que pode ser medo, raiva, angústia, ansiedade, tristeza, nojo e por aí vai. Ela esclarece que, segundo os estudos realizados pela SEE Learning (Social, Emotional and Ethical Learning)2, quando esse tipo de intervenção é realizada de forma adequada pode-se evitar que um trauma se instale.
Mônica conclui que a atuação do UNO é de extrema importância, porque, diante de uma tragédia natural, é muito clara a necessidade de ajuda, mas com relação à situação das crianças e adolescentes que atendemos, nem sempre essa necessidade fica evidente.
Ante um cenário de crianças e adolescentes (entre 7 e 17 anos) que estão afastadas de suas famílias por questões protetivas, não é difícil supor que boa parte delas passou pelo pior tipo de trauma, que é o relacional, quando a pessoa sofre a violência de quem deveria protegê-la. Essa situação, por vezes, faz com que uma criança/adolescente que apresenta sintomas pós-traumáticos seja simplesmente rotulada como rebelde, incapaz e sem esperanças. Consequentemente, isso intensifica os sintomas do terceiro e quarto graus traumáticos, que podem fazer essa criança/adolescente reprodutora da violência.
Formar essa rede de apoio em torno das crianças e adolescentes que vivem em situação de acolhimento institucional é fundamental para que possam superar suas dificuldades, resgatar a vontade e o prazer de aprender, construir vínculos de confiança e, assim, se reconectarem com a vida, para que sejam capazes de transformar suas dificuldades em força de ação e retirá-las da rota de viverem à margem da sociedade na vida adulta. O objetivo do Instituto UNO é apoiá-los para refrear e reverter o agravamento da situação de exclusão social e educacional dessas crianças e desses adolescentes.
1 O Programa “Quero Saber...” é composto por três Projetos divididos em “Quero Saber...”, “Quero Saber...Mais” e “Quero Saber...Valor”, respectivamente focados em alfabetização, letramento e educação financeira e comportamental. A partir de princípios, como afeto, escuta e amor, promove a aprendizagem a partir do ‘querer saber’ dos participantes.
2 CENTRO DE CIÊNCIA CONTEMPLATIVA E ÉTICA BASEADA EM COMPAIXÃO. Livro de Apoio do programa Aprendizagem para Corações e Mentes. Atlanta: Universidade Emory, 2019
Comments